Greve-dos-médicosCertos temas políticos são tão complexos, que há uma infinidade de motivações para posições contrárias e favoráveis. Pode haver um “não” por um perfil progressista e um “não” por motivos conservadores. Na Europa, isso se evidenciou no debate sobre a adesão a Zona do Euro, em que setores de esquerda e setores de extrema-direita eram contrários. Na França, a esquerda fez uma campanha por um “não de esquerda” no plebiscito que avaliou o tema.

No Brasil, esta metodologia nunca foi presente com peso social. Por várias vezes, em pautas amplas, como a adesão ou não a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), a hegemonia da negação a este modelo foi da esquerda, dos movimentos sociais e sindicatos. Mesmo que houvesse setores conservadores contrários (como o empresário Antônio Ermírio de Moraes) a adesão à ALCA, a hegemonia da campanha era claramente de esquerda.

Em 2005, no referendo sobre o estatuto do desarmamento, houve um ensaio deste debate aqui no Brasil. Na época, circulou pela internet (e vale lembrar que naquele momento não haviam redes sociais como temos hoje) um texto de Elídio Marques, atualmente professor da UFRJ e pesquisador do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH/UFRJ), defendendo um “sim de esquerda” como voto no referendo. Defendia a necessidade de que os setores progressistas da sociedade se posicionassem pelo “sim” mas com diferenciação em relação ao restante da campanha publicitária do tema. A campanha do “sim de esquerda” não decolou e o debate do referendo acabou sendo polarizado por posições conservadoras, tanto para o “não” quanto para o “sim”.

No Brasil, nos últimos dias, iniciou-se uma movimentação liderada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), pela Associação Médica Brasileira (AMB) e pela Federação Nacional dos Médicos (FENAM) que tem basicamente 3 pautas: a derrubada dos vetos à lei do Ato Médico, derrubada da Medida Provisória do programa Mais Médicos e plano de carreira federal para a categoria.Em alguns locais, os médicos estão realizando paralisações buscando pressionar o governo federal em torno de suas reivindicações.

Para este momento, devido a complexidade do tema, creio que devemos ter um posicionamento claramente diferenciado da direção do movimento, que até agora tem pautado motivos conservadores em torno dessas 3 pautas. É preciso dizer um “não”, de esquerda, ao programa Mais Médicos.

Entendo que os motivos progressistas para se dizer não ao programa Mais Médicos estão bem expressos no documento elaborado pelo Setorial de Saúde do PSOL. Quando o documento foi elaborado não havia ainda no cenário uma greve de médicos e, portanto, a necessidade de se posicionamento sobre tal movimentação. Por isso o Setorial não debateu a tática para a greve; “apenas” acumulamos sobre o conteúdo do programa.

Tenho dificuldades de me posicionar contrário a uma greve. Entendo que sair do seu local trabalho por uma vontade coletiva é algo positivo e que tem um grande potencial de politização. Em 2012, apoiamos a greve dos médicos; em outros momentos, estivemos junto com os médicos-residentes nas mobilizações por melhores condições de trabalho e reajuste na bolsa. Não estamos, portanto, entre aqueles que enxergam médicos como inimigos.

Mas as atuais paralisações semanais realizadas pelos médicos estão fechando o diálogo com os demais trabalhadores e usuários do sistema de saúde e sendo conduzidas de maneira quase que reacionária. Há motivos para uma greve de médicos e/ou da área de saúde, mas não são esses colocados pelo movimento atual. Só seria possível um apoio a greve dos médicos caso esta mudasse seu conteúdo. Seguem alguns motivos:

1) Somos contrários a lei do Ato Médico (e a favor da manutenção do veto). Entendemos que deve haver uma regulamentação do trabalho como um todo na área de saúde, sem sobreposição de uma profissão a outra. Portanto, defendemos a manutenção dos vetos da presidente Dilma e entendemos que eles foram fruto de muita luta dos profissionais de saúde. Avalio, inclusive, que ter esta pauta na greve é um erro tático muito grande dos médicos: sem esta pauta, poderiam agregar os demais profissionais de saúde na luta contra o Mais Médicos, mostrando que as consequências do programa poderão ser estendidas a todos.

2) Somos críticos ao movimento Mais Saúde. Este movimento reivindica 10% do PIB para a saúde brasileira mas sem estabelecer para qual saúde, se pública ou privada. Por conta disso, é apoiado por setores empresarias da saúde, que querem continuar com atividades particulares financiadas pelo setor público. Defendemos que o dinheiro público seja usado apenas na saúde pública.

3) O mito da classe médica. Nas mobilizações, as direções do movimento falam em nome da “classe médica”. Entendemos que esta classe é um mito, não existe. A categoria médica é muito diversa e inclui desde empresários médicos (donos de Hospitais, por exemplo) até trabalhadores médicos bastante precarizados (vários deles empregados de outros médicos). Não há, portanto, um único interesse entre essa “classe”.

4) Carreira federal para médicos. Já há alguns anos, defendemos o plano de carreira nacional para os trabalhadores do SUS, permitindo melhores salários a todos, diminuindo a desigualdade salarial entre as regiões. No caso dos médicos, a ideia de que os profissionais fossem bancados pelo governo federal não é ruim, pois permitiria um alívio financeiro para pequenas Prefeituras. Uma eventual lei para esta regulamentação poderia inclusive estabelecer que o dinheiro antes gasto pela Prefeitura em contratação de médicos (que a partir de então seriam pagos pelo governo federal) fosse redistribuído para gastos com os demais profissionais de saúde.

5) Expansão das faculdades médicas. Não somos, obviamente, contrários a expansão do ensino superior de medicina. Mas entendemos que isso deve ser feito pelo sistema público (e não pelo setor privado como propõe o Mais Médicos) e privilegiando que a população do entorno das novas faculdades esteja nos cursos, pois isso ajudará na futura fixação desses profissionais nas regiões mais afastadas dos grandes centros.

6) Mudança na matriz curricular. É preciso, de uma vez por todas, mudar a matriz curricular dos cursos de medicina. Nosso sistema de ensino ainda está no tempo do INAMPS (que tinha foco na medicina curativa e individual), quando já temos o SUS como sistema de saúde há mais de 20 anos. É a partir dessa mudança que conseguiremos formar profissionais mais generalistas, com capacidade de atender a grande demanda de atenção básica que temos no Brasil.

Esses são alguns apontamentos sobre a atual situação da saúde no Brasil. Um debate difícil, complexo, mas que é preciso encarar de frente, sob o risco de termos milhares de jovens médicos e estudantes de medicina sendo “engolidos” pelas tradicionais e conservadoras entidades médicas brasileiras.