Nise da Silveira é interpretada por Glória Pires.

Nise da Silveira é interpretada por Glória Pires.

Apesar de até já ter escrito sobre um filme, não sou daqueles que ama o cinema. Vou muito de vez em quando. E, neste feriadão que passou, fui ver “Nise – O Coração da Loucura”; um filme bom, que traz ótimos debates, ainda que não tenha grandes novidades estéticas e/ou de fotografia. O filme aborda um curto período da trajetória de Nise, em 1944, quando ela volta a trabalhar no serviço público, no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, bairro do subúrbio carioca.

Primeiramente, gostaria de localizar alguns personagens importantes do filme: Ivone, Mário Pedrosa e a própria Nise. Isso se faz importante visto que considero que tais informações são pouco conhecidas e elas não estão colocadas no filme em nenhum momento. Posteriormente, valem ser comentados alguns aspectos tratados pelo filme, que trazem reflexões sobre nosso modelo de saúde atual.

A assistente de Nise, apresentada no filme apenas como Ivone, é a sambista Dona Ivone Lara, do Império Serrano, que foi pioneira em vários aspectos de sua carreira. Formada em enfermagem, Ivone Lara, atualmente com 95 anos de idade, se especializou em terapia ocupacional e trabalhou nessa carreira até 1977, quando passou a se dedicar integralmente para a música. Em 1944, momento em que se passa o filme, Dona Ivone já estava envolvida com a Prazer da Serrinha, escola que existiu no morro da Serrinha antes da fundação do Império Serrano em 1947.

Além de Dona Ivone, outro personagem importante do filme é o crítico de arte Mário Pedrosa, que é peça chave no filme para legitimar o trabalho artístico feito pelos “clientes” (pacientes) do hospital. Com seu apoio, é possível realizar exposições de arte com os trabalhos realizados, dando uma força a mais para a metodologia de tratamento de Nise. Em 1944, Mário Pedrosa já era conhecido como um dos maiores críticos de arte do mundo. Já havia, também, sido expulso do Partido Comunista (PCB), acusado de “trotskysta” (em 1938, foi o único sul-americano que participou da fundação da IV Internacional, organização que pretendia organizar partidos operários ao redor do mundo que não fossem alinhados com as posições soviéticas).

Por não ser um documentário ou um filme estritamente biográfico, várias informações sobre Nise também “ficam no ar”. Nise foi pioneira, tendo sido a única mulher a se formar na Faculdade de Medicina da Bahia em 1921 (foram 136 formandos no total). No começo do filme, ela aparece voltando ao trabalho. Isso porque Nise ficou presa por 18 meses no presídio Frei Caneca, no Rio de Janeiro, logo após a Intentona Comunista de 1935, acusada de “possuir livros marxistas”. No presídio, teve contato com Graciliano Ramos (que por lá escreveu “Memórias do Cárcere”), Olga Benário e tantos outros presos políticos. Seria Nise a médica que aparece no filme “Olga” diagnosticando que ela estava grávida?

Reflexões

Além dos personagens, o filme é rico em reflexões e mostra como pouco avançamos em alguns debates acerca da nossa concepção hegemônica de saúde. Logo no começo, Nise é confrontada pelos “doutores” que apresentam os eletrochoques como único tratamento possível para os transtornos mentais, além de serem “modernos e científicos”. Não havia comprovação nenhuma de efetividade neste tipo de tratamento e o próprio filme vai mostrar isso; mesmo assim, eles eram hegemônicos e o foram até que houve muita mobilização de pacientes e familiares para que se mudasse o método de tratamento dos transtornos mentais. Atualmente, essa contradição continua. Em muitos casos, são utilizadas drogas fortíssimas, com graves repercussões no organismo de quem os recebe, ainda que não haja comprovação científica da efetividade dela para todos os casos.

Também me chamou atenção a maneira em que a terapia ocupacional é tratada. Tal serviço é o “resto” do hospital, sem verba para funcionar e localizado numa sala cheia de entulhos. Infelizmente, essa realidade não mudou: em muitos hospitais, o que financiam as atividades são bazares promovidos pelos profissionais da área com os trabalhos dos pacientes. Até hoje, também, temos um modelo de saúde focado no tratamento médico, com espaços ainda pequenos para os demais profissionais da saúde.

Outro ponto interessante e a forma que Nise chama os internos do hospital. Ela faz uma orientação para que os demais trabalhadores deixem de chamá-los de pacientes, por entender que eles também podem ser sujeitos de seu tratamento. Para Nise, em 1944, eles deveriam chamar de clientes. Felizmente, o movimento pela saúde pública no Brasil avançou neste ponto e, por entender que “cliente” pressupõe uma lógica de compra e venda, construímos o conceito de “usuário”, que é o que está estabelecido atualmente na lei.

Por fim, vale registro que as opções políticas dos personagens que citei acima (neste caso, Nise e Pedrosa) não são coincidência. O amor pela humanidade que caracteriza a essência da opção pela utopia comunista foi o que possibilitou que ambos tivessem um olhar sensível para aqueles que até então eram tratados como o “entulho” da sociedade.