eleicoeslusasPublicado originalmente no Blog Amenidades.

por Luis Leiria*

No ultimo domingo, 04 de outubro, aconteceram as eleições parlamentares em Portugal. Num sistema parlamentarista como o de Portugal, essas são as principais eleições, visto que são os parlamentares eleitos pelo voto popular que escolhem o chefe de governo (o primeiro-ministro).

Reproduzimos abaixo a postagem de Luis Leiria sobre o tema. Leiria é jornalista do portal Esquerda.net, um dos principais portais de notícias com ponto de vista de esquerda da Europa.

Antes da postagem em si, um comentário para ajudar na compreensão da conjuntura portuguesa: a coligação CDS/PSD, atualmente no poder, é o equivalente a uma coligação PSDB/DEM; PS é o Partido Socialista, equivalente ao PT brasileiro; PCP é o Partido Comunista Português; e Bloco de Esquerda é um partido-frente, com diversos grupos internos, equivalente ao PSOL. O Bloco teve, recentemente, rupturas à esquerda (formando o MAS) e à direita (com formação de grupos mais moderados, similar ao que é a Rede no Brasil). Nenhuma das rupturas do Bloco elegeu deputados.

Segue a postagem de Luis Leiria:

“Um resumo do que aconteceu nas eleições em Portugal e um guia para compreender o que vai acontecer.

Nota: post longo dirigido aos meus amigos brasileiros que não acompanham regularmente a situação política em Portugal.

“Noite de surpresa em Lisboa: Passos Coelho reeleito”, titulava o Estado de S.Paulo a matéria sobre as eleições legislativas que decorreram em Portugal este domingo dia 4. Títulos como este, com mais ou menos precisões, foram reproduzidos na imprensa internacional, chamando a atenção para um facto insólito: a direita venceu as eleições depois de ter aplicado uma política de “austeridade” carniceira, depois de ter empobrecido o país, de ter forçado meio milhão de portugueses a emigrarem porque não encontravam emprego em Portugal, depois de ter criado desemprego recorde, de ter reduzido salários e pensões e aumentado impostos a níveis inéditos – tudo isto a mando da troika comandada pela sra. Merkel, a chanceler alemã que manda na União Europeia.

Terão os portugueses ficado malucos?

Bem, a história não é bem assim. Pela primeira vez desde há muitos anos, os dois partidos de direita, o PSD e o CDS apresentaram-se coligados, justamente para terem mais chances de aparecerem como vencedores, isto é, serem a sigla mais votada. A sua coligação chamava-se “Portugal à Frente” (Pàf). Nas eleições anteriores, PSD e CDS apresentavam-se separadamente e só se coligavam, se fosse o caso, para formarem governo.

Desta vez, a coligação pré-eleitoral rendeu: a Pàf ficou em primeiro lugar, com 38,4%, seguida do PS, com 32,3%, do Bloco de Esquerda, com 10,22% e da CDU (coligação liderada pelo Partido Comunista Português – PCP), com 8,27%. (Estes dados não incluem os círculos da emigração, que elegem 4 deputados e ainda não foram apurados; normalmente, elegem 2 deputados para a direita e dois para o PS.)

Mas esta “vitória” tem de ser relativizada, porque a coligação de direita chegou na frente mas perdeu a maioria absoluta. Antes, os dois partidos tinham 129 deputados, mais que suficiente para aprovarem no Parlamento tudo o que quisessem (a maioria absoluta é 116). Agora, terão provavelmente 106 (com dois dos círculos da emigração), longe da maioria no Parlamento. Ora, justamente, o primeiro-ministro é eleito pelo Parlamento, depois de indigitado pelo Presidente da República, “levando em conta os resultados eleitorais e ouvindo os partidos”, de acordo com a Constituição.

O primeiro-ministro indigitado forma o governo e apresenta o seu programa ao Parlamento. Mesmo que não tenha maioria parlamentar, pode tomar posse, desde que não seja aprovada uma moção de rejeição e nem ele mesmo apresente e perca uma moção de confiança. Isto é: são possíveis governos minoritários, mas têm de contar com que o Parlamento os “deixe passar”. Eram governos minoritários os de António Guterres e o segundo governo de José Sócrates, por exemplo. Quando se apresentaram ao Parlamento, nenhum partido apresentou uma moção de rejeição e nem eles apresentaram moções de confiança. “Passaram”, e tiveram de negociar o Orçamento de Estado e as leis, uma a uma, para conseguir maioria.

Como o mais provável é que Passos Coelho seja chamado a formar governo e o Bloco de Esquerda e o PCP já anunciaram que apresentarão uma moção de rejeição, a possibilidade de um novo governo da direita tomar posse depende exclusivamente do PS. Se este partido votar a favor da moção de rejeição, o governo nem chega a assumir. Se se abstiver, por exemplo, a moção é rejeitada e o governo entra em funções.

É por isso que pus entre aspas a “vitória” da direita. Os dois partidos da coligação – CDS e PSD – perderam, em relação às eleições de 2011, mais de 700 mil votos e terão menos 28 deputados. Tiveram o 2º pior resultado da história da democracia portuguesa (desde 1974). Só em 2009, em circunstâncias muito particulares, a sua votação foi pior: 36,1%.

Nestas eleições, todos os restantes partidos cresceram: o PS ganhou cerca de 172 mil votos, e terá provavelmente mais 13 deputados que em 2011, o Bloco de Esquerda teve mais cerca de 260 mil votos, quase duplicando a votação e ganhando mais 11 deputados; finalmente, o PCP consolidou a votação anterior (mais 3 mil votos) e ganhou um deputado.

De todos os restantes partidos e coligações que se apresentaram aos eleitores (16, no total), apenas o partido Pessoas, Animais e Natureza (PAN) elegeu um deputado.

Assim, os próximos dias serão decisivos. Teoricamente, são possíveis muitos cenários: o Presidente da República indigita Passos Coelho, este forma governo, a moção de rejeição do seu programa não é aprovada (porque o PS, por exemplo, se abstém) e o governo da direita assume. Será um governo frágil porque não tem maioria garantida para nada; mas conta com o apoio passivo do PS.

Mas há outros cenários: se a moção de rejeição for aprovada, o governo da direita não assume e o Presidente tem de chamar o 2º mais votado a formar governo, neste caso, António Costa, o secretário-geral do PS. É algo que nunca aconteceu em Portugal, mas normal em outros países europeus. Se isso acontecer, há muitas possibilidades, desde um governo de coligação PS-Bloco-PCP que teria maioria parlamentar, mas que é altamente improvável porque há profundas divergências entre Bloco e PCP, por um lado, e o PS, por outro, em relação à dívida, à União Europeia e ao euro, só para mencionar algumas das diferenças mais importantes. Entre as possibilidades restantes estaria uma negociação apenas para a viabilização do governo do PS, comprometendo-se os dois partidos a não votar uma eventual rejeição da direita.

Finalmente, há a possibilidade de o PS também não conseguir formar governo, e nesse caso seria necessário recorrer a novas eleições, com um pormenor: elas só poderão realizar-se em abril do ano que vem porque entretanto vai haver eleições presidenciais.

Que imbróglio, não?

Resta, porém, uma questão: mesmo perdendo 700 mil votos, como foi possível que a direita ainda tivesse 36,8% depois de tanto mal feito ao povo português? Essa é uma questão que ainda fará correr muita tinta (ou muitos bytes), eu só posso adiantar uma opinião: na verdade, a direita não ganhou as eleições; o PS é que as perdeu. Para se preparar para as eleições, António Costa chamou um grupo de economistas neoliberais para fazer o seu programa económico. Estes, como seria de esperar, fizeram… um programa neoliberal, que impunha novas medidas de austeridade, como congelar as pensões (aposentadorias) durante quatro anos, implicando numa perda de 1660 milhões de euros aos já depauperados aposentados, ou a facilitação dos despedimentos, apresentados como “por consenso”. O programa, aliás, não escondia as suas consequências, pois apresentava também um estudo de impacto das medidas quando fossem aplicadas. Em resumo: enquanto a direita prometia prosseguir a mesma política de austeridade, garantindo que “o pior já passara”, o PS apresentava um programa também de austeridade. E isto porque se recusa a romper com os tratados da União Europeia, como o Orçamental, que impõe déficits de no máximo 3%, e sobretudo porque se recua a pôr em causa a dívida externa impagável.

Confrontado com os dados do “Estudo de Impacto” nos debates durante a campanha eleitoral por Catarina Martins, do Bloco de Esquerda, o secretário-geral do PS engasgou-se, não soube explicar-se e perdeu fragorosamente o confronto. Perdeu também o segundo debate com Passos Coelho pelo mesmo motivo. E não foram apenas estes os desastres da campanha do PS. Foram tantos que seria tedioso (e demasiado longo para a paciência do leitor) se enumerasse os tiros nos pés que António Costa deu durante a campanha. Só um anedótico: os primeiros cartazes da campanha do PS apresentavam o rosto de pessoas, identificadas como desempregadas, que na verdade estavam a trabalhar e não tinham dado autorização para o uso da sua imagem nos cartazes…

No final, quando o desespero tomou conta da campanha do PS, os seus responsáveis não encontraram melhor do que acenar o espantalho da vitória da direita, pedindo aos eleitores que não votassem no Bloco de Esquerda ou na CDU, porque eram “votos inúteis” (chegaram mesmo a dizer que cada voto no Bloco ou na CDU era um voto na direita), votando “útil” no PS. Em vez de propostas mobilizadoras que lhes trouxessem votos, os dirigentes do PS, porque não as tinham, optaram pela arma do medo.

Não funcionou. A CDU consolidou a sua votação e o Bloco de Esquerda foi o grande vitorioso das eleições, passando de 8 para 19 deputados, com cerca de 550 mil votos no total e uma campanha alicerçada na denúncia da austeridade e das suas medidas, na proposta da renegociação da dívida, do aumento de salários, na reposição do que foi roubado em salários e pensões e na criação de emprego.

Há dez meses, quando o Bloco de Esquerda reuniu a sua convenção, muitos “analistas” previam o fim do Bloco, que sofrera duas rupturas e estava muito dividido internamente. Mas, sob a liderança de Catarina Martins, o partido renasceu. A “pequena Catarina”, 1,5 metro de gente e 41 anos de idade, ganhou todos os debates que travou com os líderes dos outros partidos, foi forte e serena, pôs o dedo na ferida e fez propostas, sempre com um sorriso nos lábios. No final da campanha já fazia comícios espontâneos na rua, porque as pessoas se juntavam para ouvi-la mal a viam, e no último dia, numa ação de propaganda numa das principais ruas comerciais do Porto, quase não conseguia andar tal era a quantidade de gente que queria cumprimentá-la, abraçá-la, fotografá-la. Só no Porto, onde ela era candidata, o Bloco de Esquerda passou de 2 deputados para 5!

Creio que com este texto estou a contribuir para que os meus amigos do Facebook que não acompanham regularmente a política portuguesa entendam melhor as “cenas dos próximos capítulos”. Porque depois destas eleições que a coligação de direita perdeu, ao contrário do que toda a imprensa diz (e não só a imprensa, o ministro das Finanças da Alemanha já veio dizer que as eleições mostram que os portugueses querem mais austeridade!), paira um enorme nevoeiro na cena política.

Um jornalista português que eu muito prezo, o José Manuel Rosendo, fez aqui mesmo no FB um comentário que reproduzo, com a devida vénia: “Quem quer apostar que não tarda muito vamos ter três a dançar o tango? Umas pisadelas de vez em quando (só para apimentar a coisa…), mas há-de haver um arranjinho como sempre tem sido hábito…”

* Luis Leiria é jornalista do portal português Esquerda.net