A escolha da personagem Tiazinha como rainha de bateria foi um símbolo do carnaval-mercadoria

Ao escutar o cd de sambas-enredo do Grupo Especial do Rio de Janeiro deste ano e ver que quase a totalidade dos sambas não tem a “qualidade de tempos atrás”, fiquei com vontade de escrever sobre o gênero, para que possamos tentar entender os porquês dessa queda de qualidade.

Tenho argumentado que a história do samba está diretamente ligada ao desenvolvimento da sociedade e da economia. As transformações no carnaval e no samba-enredo não fogem a esta regra. Muitos dos fatos que vou relatar tem relação com a situação econômica e política do Brasil na época.

E, assim como no texto que escrevi sobre a Virada Cultural, as linhas abaixo não são fruto de uma “observação externa”. Adoro o carnaval. Sou apaixonado por samba-enredo.

E, por fim, registro que este texto só foi possível devido a pesquisa de Alberto Mussa e Luiz Antônio Simas, que resultaram no livro “Samba de Enredo: História e Arte”. O texto vai se concentrar nas origens do carnaval no Rio de Janeiro, por este ser o mais conhecido e que  sofreu maiores transformações e também pois, infelizmente, não foram achadas fontes sobre outros carnavais.

Uma origem pagã

Todo ano alguém pergunta: “quando é o carnaval este ano?” E a forma que é “escolhida” a data do carnaval mostra muito das suas origens: a terça-feira de carnaval é sempre 40 dias antes da Páscoa. Neste período, chamado de Quaresma, a tradição católica colocava a necessidade de jejum, orações, enfim, uma preparação para a Páscoa. Por conta disso, foi criada uma festa para anteceder este período de provações. Esta festa é o carnaval!

O carnaval é, portanto, uma “anti-festa”. É o momento de fazer aquilo que é proibido no restante do ano, afinal, você vai ter 40 dias para “pagar seus pecados” após os festejos. Por isso o carnaval traz inversões: o rei é gordo, a escola é de samba, os homens se fantasiam de mulher e assim por diante.

E a influência cristã no carnaval não é apenas na data: a ideia de um desfile está intimamente ligada a rituais religiosos como as procissões. Antes do carnaval, já haviam manifestações populares de formato processional, como os festejos da Senhora do Rosário e os ternos de Santos Reis. Esse formato também era visto nas religiões de matriz africana, como no caso dos afoxés vinculados ao candomblé.

Nas camadas mais ricas da população, desde meados do Século XIX, se destacavam, no período do carnaval, os desfiles das chamadas Grandes Sociedades. Já as camadas populares “preferiam” a diversão em blocos improvisados, especialmente os ranchos, que são um dos núcleos fundadores das futuras escolas de samba.

Os ranchos surgiram a partir de comunidades baianas no Rio de Janeiro e desfilavam no dia 06 de janeiro, dia de Santos Reis. Até que Hilário Jovino Ferreira teve a ideia de transferir este desfile para os dias de carnaval. A ideia “pegou” e os ranchos acabaram aceitos também pelas elites cariocas. Em 1894, o Rei de Ouro, rancho liderado por Hilário, apresentou-se para o presidente da República, Marechal Floriano Peixoto*.

A partir daí, os ranchos buscaram se afastar de sua origem popular, buscando a aceitação das elites. Buscavam o afastamento em relação aos cordões e blocos, que tinham sua imagem ligada a bagunças e arruaças. Vale lembrar que, durante a República Velha (1894-1930), as manifestações populares, especialmente de cultura negra, eram proibidas e reprimidas.

E o samba?

No final do século XIX, a palavra samba era usada para designar qualquer ritmo oriundo do batuque de origem africana. Depois, samba deixou de ser esta denominação mais genérica e passou a designar uma música de compasso binário. E, no caldeirão cultural que é a cidade do Rio de Janeiro no começo do século XX, fruto da integração entre comunidades baianas, ex-escravos oriundos do Vale do Paraíba/RJ e mestiços, crioulos e africanos que já moravam na zona portuária da então capital do Brasil, o samba passa a se aproximar pelo qual conhecemos hoje.

Primeiramente, o gênero se estabelece como samba rural, que origina o samba amaxixado, que teve seu auge com o compositor Sinhô (de “Jura” e “Gosto Que Me Enrosco“). São os sambistas da região do bairro Estácio de Sá que começam a dar uma cadência melhor para o samba, o que facilitava o canto durante as apresentações. Esta linha tem como representantes, no início, sambistas como Ismael Silva, Bide, Marçal, Newton Bastos e segue até hoje. A região entre o Morro da Conceição (Pedra do Sal), onde estavam as comunidades baianas, e o bairro do Estácio, ficou conhecida por “Pequena África”, nome dado pelo sambista e pintor Heitor dos Prazeres.

Surgimento das escolas de samba

Nesta época, em que o samba era considerado “vadiagem”, os sambistas sofriam muita repressão e perseguição. Por conta disso, lutavam por um maior reconhecimento de sua arte. Por outro lado, a Polícia e o Estado buscavam “regular” (ou seja, controlar) o movimento cultural que começava a ganhar simpatia de milhares de pessoas.

A partir de então, surgiram agremiações que buscavam ser a fusão entre a desordem dos blocos e cordões e a disciplina dos ranchos. Estas agremiações foram chamadas de escolas de samba. Não se sabe quem teria cunhado tal expressão, mas provavelmente este termo surge entre os sambistas do Estácio, que eram considerados professores da matéria. Em 1930, são 5 agremiações que se definem como escolas de samba: Estação Primeira de Mangueira, Oswaldo Cruz, Vizinha Faladeira, Para o Ano Sai Melhor e Cada Ano Sai Melhor.

Em 1932 acontece a primeira disputa entre escolas de samba. O concurso foi promovido pelo jornal Mundo Sportivo e pelo jornalista Mário Filho e contou com 19 agremiações na disputa. A partir desse primeiro desfile, as questões vão se complexificando, com novos quesitos para o julgamento por exemplo. Em 06 de setembro de 1934, para continuar a luta por maior reconhecimento, é fundada a União das Escolas de Samba (UES). A Prefeitura acolhe a fundação da associação e exige que as escolas sejam reconhecidas pela polícia do Distrito Federal (neste processo, o delegado “sugere” a mudança do nome da Vai Como Pode, por considerá-lo ofensivo. É aí que nasce a Portela).

Os sambistas, com a pressão da repressão na cabeça, passam a se “auto-censurar” na busca do reconhecimento. É daí que surge a ideia de se usarem “temas nacionais” nos desfiles. Também surge daí a exigência de Paulo da Portela para que os sambistas de sua agremiação usassem trajes finos, como terno e gravata. A repressão e cooptação é um fantasma na cabeça dos sambistas, ainda mais no primeiro período Vargas (1930-1945).

Mesmo com esse processo de aceitação, a UES não conseguiu transferir o desfile da Praça Onze para a avenida Rio Branco. A Prefeitura argumentou que o desfile ainda não era tão importante para destronar o desfile de “corsos” (tradição carnavalesca já extinta, era um desfile de carros com motoristas fantasiados jogando confetes e serpentinas).

O encontro do samba com o enredo

Nestes primeiros desfiles, a ideia difundida hoje, de que o samba a ser antado está intimamente ligado ao enredo a ser apresentado pela escola, não era uma obviedade. Na verdade, foram cerca de 30 anos para esta ideia ser consolidada.

Num primeiro momento, havia um enredo para o desfile mas os sambas cantados não tinham tal correlação. Era cantados mais de um samba e muitos deles tinham uma primeira parte composta e uma segunda parte feita de improviso.

Quando começaram os concursos, havia o critério “poesia do samba”. Mas, em 1935, no primeiro concurso promovido diretamente pela Prefeitura, a escola Vizinha Faladeira argumentou que seria impossível haver julgamento deste quesito com versos de improviso. O quesito foi abandonado, mas a ideia da Vizinha Faladeira ficou.

É difícil cravar qual foi o primeiro samba-enredo. Primeiro, pela dificuldade de pesquisa histórica. Segundo, porque o samba-enredo traz várias características, tanto na sua “forma literária” quanto nas questões melódicas.

O samba-enredo é um gênero épico. É também aquele que alude ao enredo apresentado pela escola em outros meios, como nas fantasias. Mas há ainda características melódicas, que se diferencia dos outros gêneros por conta do número de compassos, por exemplo.

Um dos sambas apontados como o primeiro samba-enredo é Teste ao Samba (1939), de Paulo da Portela. Nele, há claramente referência a um desfile (“perante a comissão”). Também foi neste ano que a Portela se apresentou com fantasias combinadas com o samba, dando uma união maior entre samba e enredo. Mas melodicamente este samba tem muitas características de um samba de terreiro.

A partir do ano de 1943, os sambas devem fazer alusão a participação brasileira na II Guerra Mundial, obviamente de maneira ufanista (afinal, estávamos na ditadura do Estado Novo). Em 1946, a Prazer da Serrinha apresenta “Conferência de São Francisco”, conhecido também como “Paz Universal”, de Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola (que serão dois dos maiores compositores de samba-enredo). Este samba ainda tem uma estrutura próxima ao samba de terreiro, mas já se caracteriza por ter mais narração do que sentimento. Em 1949 é o primeiro ano que toda a safra de sambas dissertam sobre o enredo, numa narrativa.

A partir daí, o samba-enredo passa definitivamente a ser um gênero musical, podendo inclusive ser composto sem necessariamente ir a um desfile, como é o caso de “Vai Passar“, de Chico Buarque e Francis Hime. Mas este gênero tem também suas características próprias, com diferentes tipos de samba-enredo ao longo da história.

O samba-lençol

Esse tipo de samba é bem característico do período entre 1951 e 1968 e é caracterizado por suas expressões “bombásticas”, como “glória opulenta”, “maravilha de cenário”, “salve o estadista, idealista e realizador” e por contar a história do homenageado do começo ao fim, quase sempre em ordem cronológica.

Devido ao fato do regulamento exigir “temas nacionais”, as escolas homenageiam personagens da historiografia tradicional, como Dom João VI, Princesa Isabel, Santos Dumont, Ana Néri, Caxias, Tamandaré, entre outros. Os “carnavais da guerra e da vitória” acabaram, mas o tom de exaltação a tais “vultos históricos” permaneceu.

Apesar do maior compositor do período ser Silas de Oliveira, o maior símbolo deste período é o samba “O Grande Presidente“, de Padeirinho, com o qual a Mangueira desfilou em 1956. O samba, dum ufanismo que dói nos ouvidos, narra a vida de Getúlio Vargas do nascimento até a morte (por isso o termo lençol, visto que “cobre” toda a vida do homenageado).

Ao longo do tempo, este estilo sofre mutações. O samba “Dia do Fico”, de Cabana, da Beija-Flor de Nilópolis de 1962, relata um fato histórico entrelaçando outras questões, como o nome daqueles que defenderam tal posição política. Outra possibilidade de “escapar” dos personagens, é a homenagem a paisagens brasileiras. O destaque é Silas de Oliveira, do Império Serrano, algumas em parceria e outras de maneira solo, com “Aquarela Brasileira” (1964), “Glórias e Graças da Bahia” (1966), “São Paulo, Chapadão de Glórias” (1967) e “Pernambuco, Leão do Norte” (1968).

A exaltação de paisagens permite uma mudança no estilo dos sambas. Em 1961, a pequena Tupi de Brás de Pina desce com o enredo “Seca do Nordeste“, de Gilberto de Andrade e Valdir de Oliveira, um dos mais belos de toda a história. Essa é a primeira vez que uma escola faz uma crítica social e política a partir de um samba-enredo. Além de crítico, o samba é belíssimo, com imagens incríveis, como ao seu final, quando as lágrimas do lavrador se unem com as lágrimas (chuva) do céu.

Neste período também surgem os primeiros enredos que falam de temas negros e africanos. A pioneira nesse tema foi a Acadêmicos do Salgueiro. Em 1954, com “Romaria à Bahia“, um novo vocabulário chega ao samba-enredo: candomblé, catereté, acarajé. Os sambas não foram diretos em relação ao tema, por isso a introdução do negro através de sambas em homenagem a Castro Alves, em homenagem a Machado de Assis, etc.

Em 1960, já com o professor de artes plásticas Fernando Pamplona como carnavalesco, o Salgueiro apresentou “Quilombo dos Palmares“. Em 1963, desceu com “Chica da Silva“. Pamplona foi um dos primeiros carnavalescos com “qualificação técnica” e fez muitos carnavais com a temática negra. Outras escolas também passaram a inserir negro em seus desfiles: Unidos da Tijuca, Mangueira, Mocidade Independente e Unidos de Lucas, em 1968, com o excelente “Sublime Pergaminho“. Este último chama a atenção por citar a organização e luta dos negros como algo que impulsionou o fim da escravidão.

O samba-enredo passa então a ter temas mais populares, próximos da maior parte daquele grande número de pessoas que já iam assistir os desfiles.

Esse aumento de público também vai causar mutações nas escolas: são construídas arquibancadas e, por conta disso, as escolas passam a desfilar com carros alegóricos maiores. Esse aumento vai gerar novos custos e o poder econômico vai passar a ser cada vez mais decisivo nos desfiles.

Outra mutação importante é a possibilidade de gravação dos sambas em disco, a partir do final dos anos 1960. Isso passa a render direitos autorais para os sambistas que tem seu samba escolhido pela escola. Isso altera decisivamente o samba-enredo, visto que passam a existir “compositores de carnaval”, ou seja, compositores que só faziam samba-enredo, diferente do período anterior, que o samba-enredo era feito por sambistas “de ano todo”. Um símbolo desta mudança foi o fato da Portela, em 1974, ter como samba vencedor para o enredo “O Mundo Melhor de Pixinguinha” um samba de autoria de pessoas externas a escola.

Mas a gravação dos sambas também permitiu que estes passassem a ser muito conhecidos pelo público. Em 1967, quando a Mangueira entrou na avenida com “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato“, de Hélio Turco, Jurandir e Darcy da Mangueira, este já era um sucesso popular. O período de 1969 a 1989 é de grande popularização do samba-enredo, uma época de ouro dos desfiles das escolas de samba.

1969 – 1989

Assim como a ebulição política brasileira do final dos anos 1950 e início dos 60 permite sambas com viés mais crítico, o período seguinte, especialmente de 1964 a 1980, vai gerar novos desafios para os sambistas.

As escolas que optam por agradar o governo militar não conseguem realizar grandes carnavais (os sambas não serão citados pela sua irrelevância musical). Por outro lado, algumas sambas que falam da escravidão e de outras questões sociais, sofrem “adaptações”. Os sambas não chegam a ir pra a censura; o que ocorre é uma espécie de “auto-censura” no processo de escolha dos sambas.

Para a gravação em disco, que tem um tempo limitado, os sambas também passam a ser mais curtos. É o que acontece com o enredo “Alô, Alô, Taí Carmen Miranda“, do Império Serrano de 1972, que chegou a ser gravado pela cantora Elis Regina. O sambista Martinho da Vila também introduz uma nova cadência, numa linguagem mais próxima com o partido-alto. Um representante dessa mudança é “Iaiá do Cais Dourado“, da Vila Isabel de 1969.

A escola União da Ilha do Governador introduz, nos anos 1970, novas temáticas, ao falar do cotidiano contemporâneo, como nos sambas “Domingo“, de 1977 e “O Amanhã“, de 1978. A Beija-Flor também ganha destaque, com “Sonhar Com Rei Dá Leão“, de 1976, e “Criação do Mundo na Tradição Nagô“, de 1978.

Salgueiro, Mangueira e Portela também aderiram aos sambas curtos, com “O Rei da França na Ilha da Assombração“, do Salgueiro de 1974 (conta-se que o carnavalesco Joãozinho Trinta mandou cortar diversos versos deste samba), “Lendas do Abaeté“, da Mangueira de 1973 e “Ilu Ayê, Terra da Vida“, da Portela de 1972.

Lendas e festas populares passam a ser tema frequente dos enredos. A Unidos de São Carlos desceu com “Festa do Círio de Nazaré” em 1975; em 1973, a Em Cima da Hora veio com “O Saber Poético da Literatura de Cordel“; em 1974, a Mocidade Independente trouxe “A Festa do Divino“; em 1970, a Portela veio com “Lendas e Mistérios da Amazônia“. O meio-ambiente é lembrado por “Como Era Verde Meu Xingu“, da Mocidade de 1983. As expressões de origem africana ganham destaque, com alguns sambas tendo refrões inteiros só com esta linguagem.

A literatura também ganhou expressão através do samba-enredo: em 1972, a Imperatriz Leopoldinense desceu com “Martim Cererê“, homenagem ao poema de Cassiano Ricardo; em 1975, a Portela veio com “Macunaíma, Herói de Nossa Gente“; em 1980, a Vila Isabel, em samba de Martinho da Vila, homenageou poema de Drummond com “Sonho de Um Sonho“. O maior destaque deste tema é “Os Sertões“, da Em Cima da Hora de 1976, de Edeor de Paula.

O próprio carnaval também ganhou suas homenagens: em 1982, a União da Ilha veio com “É Hoje“; em 1989, a mesma União da Ilha desfilou com “Festa Profana“. O maior destaque é um samba do Império Serrano, vencedor do carnaval de 1982, que tematizou os problemas do gigantismo dos desfiles, com “Bumbum Paticumbum Prugurundum“. Em 1984, a Vila Isabel falou dos trabalhadores que fazem o carnaval, com “Pra Tudo Se Acabar na Quarta-Feira“.

A abertura política vivenciada pelo Brasil no final dos anos 1970 e começo dos 1980 também vai influenciar o carnaval. São vários os sambas que, ao longo dos anos 1980, vão trazer temas políticos. A São Clemente, escola do bairro de Botafogo, se especializa nesta área, com “Capitães do Asfalto“, em 1987, além de outros; o Império Serrano traz “Eu Quero“, em 1986; a Caprichosos de Pilares desfila com “E Por Falar em Saudade…“. Em 1988, como não poderia deixar de ser, o centenário da abolição da escravidão é tema recorrente: a Vila Isabel vem com “Kizomba, a Festa da Raça” e a Mangueira desfila com o ácido “100 Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão?“.

O ano de 1989 marca o fim deste período. O samba “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia“, da Beija-Flor, é punido pelos jurados, que desconheciam alguns termos usados no samba, e julgaram que aquelas palavras não tinham a ver com o enredo.

De 1990 pra cá

Mesmo com críticas internas nas escolas desde meados dos anos 1970 (quando a escolha de 1974 abriu uma crise na Portela), com divisões internas (como a formação da Tradição em 1984), a qualidade dos sambas vinha resistindo.

Mas somaram-se aos fatores elencados acima (“profissionalização” dos compositores, necessidade de poderia econômico ao carnaval) uma série de outras questões. Ou seja, aquilo que vinha sendo previsto de fato aconteceu

A transmissão pela TV também alterou o formato do desfile. Aqui vale uma breve comparação: porque a TV aberta não transmite jogos de tênis? Porque a TV aberta conseguiu alterar o formato dos jogos de volêi? Em ambos os casos, a resposta está ligada da TV precisar de uma programação mais previsível. Desta forma, as escolas passaram a ter que desfilar em tempos muito fixos, gerando uma aceleração do samba.

Outro ponto é que o quesito “samba-enredo” é hoje apenas um quesito a mais na apuração. Vale 10% do total das notas. Ou seja, um samba-enredo ruim não significa uma derrota no carnaval. E o inverso também é verdadeiro. Prova disso é que teve escolas que re-editaram sambas clássicos e foram rebaixadas para o Grupo de Acesso, mesmo recebendo nota 10 no quesito. Em 2009, foi triste ver o clássico “A Lenda das Sereias“, do Império Serrano de 1976, ser novamente apresentado na avenida com a escola sendo rebaixada ao final da apuração.

Essa aceleração possa ser percebida mesmo pelos ouvidos mais insensíveis à música. Um bom exemplo são dois sambas do périodo atual: “Se Todos Fossem Iguais a Você“, da Mangueira de 1992 e “Chico Buarque da Mangueira“, da mesma escola em 1998.

A partir dos anos 1990, os sambas passam a ser muito parecidos. Cada escola tenta todo ano ter um samba que vai dar um “pulo do gato” e empolgar as multidões, normalmente com um “refrão pra cima”. É normal você começar a cantar o samba de um ano e emendar com outro após o refrão, visto que as melodias se parecem muito.

Este período ainda guarda exceções dignas de citação: em 1999, a Unidos da Tijuca ganhou o Grupo de Acesso com “Os Donos da Terra“; em 2002, a Mangueira veio com “Brasil Com Z é Pra Cabra da Peste, Brasil Com S é Nação do Nordeste“; em 1991, temos “Me Masso Se Não Passo Pela Rua do Ouvidor“, do Salgueiro; a Grande Rio estreou no Grupo Especial em 1993 com “No Mundo da Lua“; em 1990 a São Clemente fez a crítica com “E o Samba Sambou“; em 2010 a Vila Isabel homenageou Noel Rosa com “Nöel: A Presença do Poeta da Vila“.

A queda da qualidade dos sambas também está ligada a elitização do carnaval. Com os trabalhadores participando do desfile quase que apenas como empurradores de carros alegóricos ou nas poucas alas destinadas as comunidades, o samba-enredo está destinado a um público que não se interessa exatamente por sua qualidade.

E essa elitização só tem crescido nos últimos anos: ingressos cada vez mais caros, diminuição dos locais populares e dificuldade para compra dos ingressos (o que torna cambistas e/ou agências de viagem as únicas opções).

Para além da lamentação

Nestes anos todos, muitos sambistas “saíram de cena”, desiludidos com os “rumos do carnaval”. Este texto não pode chegar a esta mesma conclusão.

A festa popular do carnaval não deixou de existir por conta da elitização dos desfiles das escolas de samba. Ela ressurgiu nos blocos de rua, nos desfiles dos grupos de acesso, nas festas gratuitas que ocorrem aos milhares pelo país.

Mas o processo de elitização continua vivo. No Rio de Janeiro, os blocos tem que se cadastrar na Prefeitura com meses de antecedência. Em vários blocos, já há a sugestão para a cobrança dos famigerados abadás.

A elitização não se dá, portanto, por conta do formato (bloco de rua, desfile das escolas, etc). A elitização é fruto do poder do “Deus mercado”, que sempre busca a extração de lucro, mesmo que o bem a ser comercializado seja a “alegria”.

Por isso, não basta lamentações e uma exaltação dos “carnavais do passado”. É preciso resistir ao processo de mercantilização, entendendo que esta resistência deve estar aliada a lutas que vão além do carnaval, pela vida do jeito que ela é, na sua essência, sem a “vida-mercadoria” que nos é imposta a cada momento.

*A música “O Enredo de Orfeu” conta um pouco esta trajetória. Favor desconsiderar a parte do Gabriel O Pensador na música.