Filas e mais filas, demora nas consultas, trabalhadores doentes atendendo usuários doentes, planos de saúde cada dia mais caros, ausência de política de medicamentos, violência na relação entre usuário e trabalhador, muitas reclamações… A situação da saúde pública no Brasil de hoje beira o caos.

A Constituição Federal garante a saúde como direito de todos e dever do Estado. Essa garantia só existe graças a uma luta muito grande de trabalhadores, estudantes, usuários da saúde, sindicatos e movimentos populares nos anos 1980.

Uma conquista popular

Até 1988, só os trabalhadores com carteira assinada tinha direito ao tratamento de saúde no Brasil. Isso excluía muita gente: desempregados, trabalhadores rurais, donas-de-casa, crianças, jovens, entre tantos outros. Além disso, o “sistema” de saúde brasileiro, chamado de Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), estava focado somente no tratamento de doenças e não na prevenção delas. Para os que estavam fora do Inamps restavam as casas de misericórdia, que podiam ou não atender tais segmentos.

Foi então que, no final dos anos 1970 e começo dos 80, começou um movimento muito forte defendendo uma reforma sanitária no Brasil. Trabalhadores da saúde, intelectuais, estudantes e o movimento popular (que organizava os usuários do sistema) lutavam pelo acesso de todos ao sistema de saúde e para que este sistema invertesse suas prioridades, atuando de maneira mais forte na prevenção, evitando as doenças. Foi trazida também uma visão mais ampla sobre o que é saúde, a partir do conceito de determinação social da saúde e da doença.

Pelo momento político em que acontecia (fim da ditadura militar) e pela sua visão de saúde, o movimento ampliou também suas pautas. Em um dos grandes fóruns de debate da época, a 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986, foi aprovado documento que dizia que a saúde no Brasil dependia de outras reformas estruturais, como a reforma agrária e o não pagamento da dívida pública. Então, em 1988, muitas dessas bandeiras foram aprovadas na Constituição: gratuidade, universalidade, integralidade, participação popular e equidade.

Porque não funciona melhor?

O Sistema Único de Saúde é uma grande avanço, se comparado com o Inamps. Porém, mesmo tendo sido um avanço, o SUS trouxe também algumas brechas legais que enfraqueceram sua eficácia. Duas delas são fundamentais: a permissão para um sistema privado complementar e a ausência de garantia do financiamento.

Podemos dizer, então, que o problema da saúde pública no Brasil não se resolve por falta de vontade política e de organização popular. Com o SUS, os governos têm todos os instrumentos para prover uma saúde pública de qualidade para a população brasileira. Mas é preciso ter coragem e determinação para enfrentar as corporações provadas da saúde (ou melhor, da doença), grandes laboratórios farmacêuticos e fazer valer o que está na lei. Vale lembrar que planos de saúde são grandes financiadores eleitorais, vinculando a ação de muitos políticos, das várias esferas, aos interesses dessas corporações. Por outro lado, o movimento pela reforma sanitária teve algumas ilusões institucionais: avaliou que bastava aprovar uma lei e esta lei viraria realidade.

Entre as brechas legais do SUS, a permissão para a saúde privada complementar abriu espaço para que hoje esta seja a principal provedora de saúde, seja via planos privados, seja via serviços comprados pelo Estado com dinheiro público. A maior parte dos hospitais privados recebe muito dinheiro público. Já o financiamento para a saúde pública e estatal é insuficiente, visto que a lei definiu que é preciso ter um mínimo de gastos em saúde, mas não definiu o que é saúde. Aproveitando-se disso, tem muita prefeitura e muito governo estadual que gasta em propaganda e diz que é gasto em saúde.

Por conta disso, é preciso retomar a luta pela saúde pública e de acesso universal, que teve tanta força nos anos 1980. Para isso, são fundamentais os fóruns populares de saúde que aglutinem trabalhadores, usuários e estudantes da área. É preciso lutar, porque saúde não se vende, louco não se prende: quem tá doente é o sistema social.

*Esse artigo, de 2010, devidamente atualizado, foi publicado originalmente na revista Mundo Jovem.