angelina-jolie-chora-durante-cerimonia-pelo-dia-mundial-do-refugiado-em-washington-dc-2062003-1314290734075_1920x1080Na semana passada, ganhou destaque a decisão da atriz Angelina Jolie de fazer uma dupla mastectomia (retirada dos seios), após fazer um mapeamento genético que indicou possibilidade dela ter câncer de mama. A partir daí, aflorou um debate acerca das possibilidades de prevenção e promoção da saúde e se o método usado por Jolie era válido e universalizável.

Durante muitos anos, a saúde (e a medicina em especial) se dividiu entre dois pólos, entre uma visão preventivista e uma visão curativa. No Brasil, isso se deu de maneira mais sistematizada a partir de meados dos anos 1970, a partir da tese de doutorado de Sergio Arouca, na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Essa tese ajudou nos embasamentos teóricos do movimento pela reforma sanitária, que além de reivindicar a universalidade do sistema de saúde, também lutava por uma mudança de lógica no atendimento a saúde no Brasil, saindo de um foco curativo, indo a um modelo preventivo. A tese de Arouca já criticava à época um modelo pretensamente preventivo, que estava descolado da ideia de determinação social da doença.

Quase 40 anos após a tese de Arouca, é possível dizer que não há mais ninguém que hoje negue a prevenção. A questão hoje é: qual prevenção? A prevenção hegemônica hoje se baseia em três modelos, que se inter-relacionam; todos eles trazem características liberais, pois priorizam o individualismo como forma de combater a doença. Na ausência de nomes melhores nomes e até de um debate mais aprofundado e sistematizado sobre o tema, chamarei eles de preventivismo do cada um por si, preventivismo higienista e preventismo de mercado.

O preventivismo do cada um por si é bastante publicizado por programas de TV, como o matinal Bem-Estar da Rede Globo. Ele coloca uma série de “tarefas” ao usuário do sistema de saúde, desconsiderando se é possível cumprir ou não. Andar no parque, subir de escada, alimentação de qualidade, andar a pé e outras formas de exercício são orientadas como se todos tivessem acesso aos parques, morassem em prédios, escolhessem seu almoço ou trabalhassem perto de sua casa. É um modelo que enxerga a sociedade como algo neutro, sem conflitos de classe ou desigualdades sociais. O modelo também não propõe alterações mais profundas na estrutura social que dessem conta dessas possibilidades preventivas, como a redução da jornada de trabalho, este sim um grande incentivo a uma vida mais saudável. Ao não fazer tais atividades, a culpa recai sobre o indivíduo, desconsiderando os aspectos sociais e coletivos.

Outra forma propagandeada é um preventivismo higienista. O mais célebre defensor deste modelo no Brasil é o infectologista conhecido como Dr. Bactéria. Este modelo desconsidera a importância do contato social e ambiental para a criação de anticorpos nos indivíduos, propondo um cuidado extremo no contato com bactérias e outros agentes causadores de doenças, impossível de ser atingido por amplos contingentes sociais. Se este modelo for levado para uma visão de sociedade, podemos chegar a um modelo fascista, de exclusão e higienismo social.

O modelo do preventivismo de mercado se apropria do discurso preventivo para vender seus produtos. A versão mais famosa é a propaganda de um famoso anti-gripal. Se você espirrou, é gripe e, se é gripe… (o final todos sabem). Há muitos motivos para que as pessoas espirrem mas a propaganda leva a uma associação entre espirros e gripe; isso acontece porque possibilita a venda de medicamentos e não por uma vontade de prevenir e/ou tratar a gripe.

Como podemos perceber, estes modelos se misturam, pois estão baseados numa mesma visão de mundo. Refletem também a hegemonia do modelo curativo, não apenas entre os trabalhadores do setor, mas também (e principalmente) entre os usuários. A disputa da construção de um modelo preventivo coletivo é uma batalha longa, porque primeiro é preciso desfazer um mito que o setor curativista e privatista da saúde tentou colocar em cima dos defensores do modelo preventivo: a de que somos contrários a qualquer tipo de tratamento.

Essa é uma daquelas típicas mentiras que já foram contadas mil vezes tentando se tornar realidade. É evidente que, caso a pessoa caia de uma escada e quebre uma perna, não iremos ficar dizendo que ela precisa ter mais cuidado, andar devagar, colocar anti-derrapente nos degraus, etc. Com a perna quebrada, é preciso colocar gesso e ponto. A questão é que a medicina curativa atua sempre desta maneira, como se todos os casos fossem “casos de guerra” e aí nunca há espaço para uma prática efetivamente preventiva.

O modelo educacional também reflete isso. Se é um avanço termos departamentos de medicina preventiva (ou saúde preventiva, saúde pública, saúde comunitária e saúde coletiva) em todas as universidades e faculdades da área, a criação desses departamentos serviu a um processo de isolamento do conhecimento preventivo, fazendo com que tal conhecimento não seja incorporado nas outras áreas da medicina, onde cada uma tem seu departamento: cardiologia, pediatria, hematologia, otorrinolaringologia e assim por diante.

É neste contexto que a decisão de Angelina Jolie serve mais a este discurso liberal de prevenção do que a um avanço preventivo de fato. Não se trata de avaliar a questão do ponto de vista da individualidade de Jolie, mas sim como esta medida extrema poderia ser reproduzida ou não. A opção de Jolie pode instaurar uma paranoia, que tende mais a prejudicar do que ajudar nos tratamentos.

A estratégia preventiva em saúde não dá espaços para soluções milagrosas, por isso é tão difícil de ser implementada, ainda mais quando vivemos numa época do fortalecimento das políticas de governo (curto prazo) e enfraquecimento das políticas de estado (longo prazo). Mais uma vez, a propaganda mostra uma “solução fácil”, mas inacessível a todos e todas. Por isso, precisamos ir além da propaganda e continuar a luta por um modelo preventivo de verdade, coletivo, que vislumbre a construção de um novo modelo societário, que produza saúde ao invés de doença.