11dejulho-300x146Fonte: CSOL

Por Bernardo Pilotto* e Fábio Nassif**

O progressivo abismo de gerações, métodos e pautas

O dia 11 de julho entrou pra história. Não somente pela importante mobilização ocorrida em mais de 150 cidades, que reuniu ao menos 100 mil pessoas, mas também por expor a distância entre o movimento sindical organizado e os manifestantes que saíram às ruas em junho, menos de um mês atrás.

Greves gerais não são comuns no Brasil. São, inclusive, proibidas pela legislação trabalhista. Antes dessa, apenas nos anos 1980 tivemos paralisações gerais que pudessem ser chamadas por tal nome. Naquele tempo, o movimento sindical vivia seu auge, com a organização dos sindicatos dos trabalhadores do serviço público, com a CUT sendo uma grande referencia para o conjunto da classe trabalhadora e numa conjuntura de grave crise econômica. Portanto, o dia 11 de julho marca uma vitória, mesmo que limitada: a retomada da ideia de que o método de uma greve geral é um método possível e acertado para a luta dos trabalhadores.

Mas o Dia Nacional de Lutas com Paralisação foi marcado pela estranheza de ver centrais sindicais pelegas, comprometidas com os governos e os patrões até o osso, indo às ruas com discursos radicalizados, tentando mostrar sua capacidade de luta. Mesmo com os discursos da CSP-Conlutas, central ligada a partidos da oposição de esquerda ao governo Dilma, nos atos e passeatas , o que se viu foi um método de ação bastante velho, que foi bastante questionado pelo ascenso do mês de junho. Na maioria das cidades, os trabalhadores se reuniram em praça pública para ouvir suas “lideranças” subirem em caminhões de som e fazerem discursos inflamados.

Esse cenário já era previsto, visto que o dia 11 de julho foi articulado em reunião de 6 centrais sindicais, que definiram a pauta da greve geral. Mas tal pauta não foi articulada, votada e defendida pelos trabalhadores, nem tampouco veio amadurecendo ao longo de debates coletivos. O resultado disso foi que a maior parte das categorias que foi às ruas levou suas próprias pautas para o dia de greve unificada, que ficou mais parecido com uma “greve simultânea”.

Ao fim do dia, pouco se acumulou em formação política, em disposição para construir lutas que avancem para além do corporativismo. Entendemos que vários pontos merecem reflexão, para que os próximos momentos de luta possam aproximar a juventude e os movimentos sociais mais antigos. É preciso também que os movimentos já estabelecidos renovem seu método, sob a pena de irem, em pouco tempo, para a lata do lixo da história.

Derrotas e ascenso

Durante os últimos 20 anos, muitos movimentos estiveram nas ruas lutando contra retirada de direitos. Em geral, foram lutas derrotadas pelos governos e pelos patrões, que se viram vitoriosos na maioria desses momentos. A lógica dos últimos anos foi de menos direitos para os trabalhadores e para a juventude.

Quando, em junho, milhares de pessoas foram às ruas, muitas delas gritando que o “gigante” (o Brasil) havia acordado, aqueles e aquelas que já estavam na luta pelos pautas trazidas novamente à tona (saúde e educação de qualidade, combate a corrupção, redução das tarifas de ônibus) ficaram, pelo menos num primeiro momento, incomodadas, visto que estas já estavam “acordadas” há anos. Mas nossa atitude não deve ser a de excluir aqueles que estão chegando agora; muito pelo contrário, devemos pensar métodos que possam servir para aglutinar todos que querem, desejam e precisam lutar, seja a geração anterior, seja a “geração de junho”.

A nova geração de junho já nasceu numa época de extrema precarização das condições de trabalho e de vida. Tiveram seus direitos enquanto classe trabalhadora retirados antes mesmo de se entenderem como tal, já sob uma reestruturação produtiva perversa. Isso não significa desapego, descompromisso com a história nem muito menos falta de preocupação com seu futuro.

As filhas e filhos do neoliberalismo estão nas ruas justamente para questionar suas consequências, e não para referendá-las. Muito menos para aceitá-las por acreditar que os governos passados foram piores. Erram, portanto, aquelas e aqueles que enquadram a totalidade desta camada de ativistas na questionável categoria “classe média”, como forma de tirá-los da parte fundamental para as mudanças sociais que é a classe trabalhadora.

No dia 11 de julho, ouvimos por diversas vezes que “a classe trabalhadora estava entrando em cena”. Essa frase dava a entender que os movimentos de junho não foram realizados por trabalhadores. O que ocorreu é que as paralisações do dia 11 de julho trouxeram para a cena política a classe trabalhadora brasileira mais tradicional, organizada por sindicatos e movimentos que tem muitos anos de duração e atuação. Mas isso não quer dizer que as mobilizações do mês de junho foram feitas por setoresestranhos à classe trabalhadora. Muito pelo contrário, estavam ruas em junho milhares de trabalhadores do comércio, do telemarketing, estagiários; enfim, o que vem sendo chamado de precariado brasileiro.

Apesar do cheiro de velho, pautas corretas…

A mídia corporativa buscou desqualificar o dia 11 de julho por conta da presença de pautas históricas da classe trabalhadora, ao afirmar seu desencontro com as múltiplas pautas que têm marcado o atual momento. Ora, em primeiro lugar deve-se refletir sobre os motivos de tais pautas “antigas” ainda se colocarem como reivindicação, legítimas e necessárias! Deve-se buscar entender o porquê da redução da jornada de trabalho sem redução salarial, a defesa de uma aposentadoria digna, da reforma agrária e do não pagamento de dívida pública ainda se apresentam nas vozes das organizações. Ou seja, ao invés de chamar tais pautas de “velhas”, deveriam denunciar a incapacidade dos governantes deste país em prover boas condições de trabalho e vida e de realizar reformas estruturais básicas que rompam com a lógica colonial que aqui habita.

Evidentemente, parte dos setores organizados também não conseguiram explicar porque depois de dez anos de governos petistas tais bandeiras históricas ainda não se concretizaram. Estes fazem malabarismo retórico, prometendo que o governo federal segue em disputa, jogando foco em inimigos isolados – como se vê recorrentemente com as lutas, por exemplo, contra Meireles, Guido Mantega ou outro qualquer agente pontual de um governo que faz parte de um todo. Parte dos setores organizados buscam alimentar a ilusão de que com um pouquinho de pressão e mais um tantinho de habilidade negocial se consegue fazer mudanças estruturais no Brasil: é a velha tentativa de dar nova roupagem à miséria do possível.

O segundo elemento se trata da reflexão se não há mesmo ligação entre as chamadas pautas tradicionais e as novas pautas. Usando o exemplo mais emblemático: o preço da tarifa de ônibus tem ou não relação com uma luta por melhores condições de vida? É evidente que sim. Mesmo que a pauta não esteja localizada sobre o regime de trabalho, ela está diretamente ligada à vida dos trabalhadores. Por uma lógica exageradamente formal, diante dessa conjuntura de barbárie e super-exploração, a redução do preço na tarifa é tão importante quanto um pequeno aumento salarial que seria gasto nos vinte centavos a mais em transporte. A qualidade dos transportes também se relaciona com as condições de trabalho e o tamanho da jornada de trabalho, visto que os trabalhadores são submetidos, ao demorarem pra voltar pra casa em ônibus lotados, a jornadas “externas” de trabalho bastante extenuantes.

Na matemática simples elas se assemelham, apesar da comparação inglória de um aumento salarial que pode ser muito mais duradouro e útil pra quem trabalha. Por outro lado, é preciso reconhecer que a pauta do transporte consegue adeptos mesmo entre aqueles que não vivem de seus salários mas também usam transporte público. Talvez por isso o caráter popular das mobilizações.

Todas as bandeiras levantadas pela classe trabalhadora que foi às ruas neste 11 de julho interessa aos mais jovens. Mas vale também uma reflexão profunda sob quais condições de trabalho estão submetidas estas juventudes. Será que trabalham com carteira assinada? Será que têm sequer um contrato? Será que têm jornada de trabalho fixa? Será que têm direito a férias e décimo terceiro? Boa parte sequer entende como funciona tudo isso. Boa parte está submetida a um regime informal de trabalho, sob a ameaça constante de demissão sem direitos, em empresas privadas ou sendo empresa de si mesmos. Vale, portanto, um esforço do movimento sindical mais tradicional em buscar pautas que dialoguem com as condições de trabalho dessa geração para, quem sabe, ela se organizar a partir de seus locais de trabalho ou ao menos se envolver nas ruas com pautas que lhe dizem respeito mais diretamente.

Os movimentos populares chamam a atenção por se apresentarem como alternativa viva para organização da classe. Segue outros caminhos, complexos e tortuosos, mas que por vezes conseguem organizar-se a partir de demandas econômicas pontuais e politizar uma camada importante de ativistas. Também passam por um momento de reorganização, tentando superar referencias que perderam a validade nas embalagens do Estado e empresas. Não devem ser encarados como substitutos do movimento sindical, mas deve-se olhar com muito respeito a estes setores que inclusive organizam parcela da juventude precariada.

Representações de fato, de direito e novos métodos de luta e organização

Nas ruas, muito se discutiu acerca da ausência de lideranças e de entidades representativas do movimento. Aos mais velhos isso soa como perigoso ou até reacionário. Mas que culpa tem essa nova geração se a CUT, Força Sindical e tantas outras não chegaram a seus locais de trabalho para organizar lutas? Onde estavam neste tempo todo enquanto os seus direitos foram retirados? Se essa geração nova não elegeu a CUT, por exemplo, como sua representante, por que deve aceitá-la como tal?

No afã de ganhar espaços políticos que até um mês atrás eram tão difíceis, parte dos setores da esquerda olhou o movimento como um meio de ser reconhecido pelo governo como representação de algo. Mas, com esta atitude, responderam de maneira superestrutural a um problema profundo de representação.

É bem verdade que se a esquerda anti-governista estivesse num mesmo pólo aglutinador, que respirasse os novos desafios colocados, ela poderia ser mais bem reconhecida diante deste ascenso. Mas essa possibilidade se esgotou no Conclat em 2010, quando o setor majoritário da CSP-Conlutas optou por um passo à frente na sua auto-construção e por dois passos atrás na organização unitária da classe.

Há um encantamento recente na diferenciação entre os métodos de luta e organização das antigas e novas lutas. Muitos apostam todas as fichas neste elemento para explicar tal distância. Quase como se a juventude estivessem nas ruas contra os caminhões de som, bandeiras e camisetas.

Os métodos em si não são o centro do estranhamento geracional. É bem verdade que parte da organização sindical viveu um ascenso nos anos 80 e 90 e mesmo diante do esvaziamento do movimento de massas continuou utilizando os mesmos métodos. Aí sim o estranhamento é justificado: utilizar métodos necessários no ascenso em um momento de refluxo total (o caminhão de som que ocupa mais espaço do que manifestantes na ruas de fato causa estranheza).

O importante é colocar a questão do método em seu devido lugar. Eles não são imutáveis. A nova geração utiliza os métodos que lhes são mais próximos, a partir de referências que lhes são frescas na memória. Marchas, ocupações de praças, bloqueios de vias e até mesmo o enfrentamento com prédios símbolos do poder do Estado são algumas dessas. Estão longe de serem inovadoras. Mas são algumas que estão sendo apropriadas, no Brasil e no Mundo.

O centro da questão é a busca por métodos que estejam de acordo com as experiências reivindicadas por esta geração e de acordo com princípios caros à esquerda – muitas vezes abandonados ao longo da história. A horizontalidade talvez tenha muito menos a ver com os impactos da forma organizativa cibernética – como gostam de defender os analistas modernos –  e mais a ver com a necessidade da auto-organização, de democracia levada a sério.

A burocratização de parte do sindicalismo brasileiro passou a enxergar a auto-organização democrática como um risco a suas benesses e a seus interesses próprios. Isso foi acentuado pela entrada de boa parte do movimento sindical no governo federal.

O tema das bandeiras, que abalou as organizações, também tem aspectos interessantes. De um lado expressam o rechaço às organizações políticas de forma geral, pois são elas também identificadas como traidoras. Por outro lado, os setores que reconhecem o papel das organizações nas lutas sociais simplesmente não querem, com razão, serem artificialmente representados a partir de uma foto de jornal que o coloca abaixo de uma bandeira que não lhe pertence. A resposta da maior parte das organizações a este ponto tem sido mais do mesmo: a briga para colocar mais e mais bandeiras na frente de atos é acirradíssima. Neste ponto, muitas organizações confundiram o sentido figurado e o sentido literal do que são bandeiras. Avaliaram que um partido se define por um pedaço de pano com um símbolo e não por seu programa, ou seja, pelas suas bandeiras de luta.

A utilização de novos métodos de luta e organização não foi exclusiva dos recentes movimentos. Há alguns anos, vários movimentos com uma nova cara vinham se afirmando, como a Marcha da Maconha, Marcha das Vadias, entre outros. Também vale destaque as greves ocorridas em 2011 e 2012 no serviço público federal, que em muitos lugares foram protagonizadas por novos ativistas.

Por fim, vale também para a esquerda socialista absorver os métodos atualmente utilizados, assim como dialogar com os métodos antigos que lhes parecem corretos. Neste sentido, a greve geral do dia 11 foi fundamental e, esperamos, inspiradora para a juventude. Colocou a greve no imaginário novamente da população, o que pode gerar bons frutos futuramente.

11 de julho

A paralisação do dia 11 de julho foi construída de forma bastante vertical e super-estrutural, justamente pelo método majoritariamente criticado nas ruas. Sua pauta não foi debatida de forma ampla, o que gerou uma situação estranha: poucos foram às ruas pela pauta geral; a maior parte das categorias esteve presente nas passeatas com suas próprias bandeiras, buscando convencer os demais setores presentes da justeza das suas reivindicações. Afinal de contas, quem sabia mesmo qual a pauta unificada da paralisação?

Em agosto, teremos novamente um dia de paralisações, aparentemente construído com a mesma forma e conteúdo. É preciso lutar pela oxigenação destas manifestações, sob pena de criarem um abismo ainda maior com as novas gerações.

Mas, mesmo atrasado e predominantemente puxado por setores que não querem nada mais do que proteger o governo de Dilma e do PT, o 11 de julho marcou esta  nova geração. Se ela não esteve presente massivamente nas ruas ao menos parou para refletir sobre a necessidade de se enxergar enquanto classe trabalhadora. E, mais do que isso, começou a pensar nas enormes tarefas que tem pela frente em absorver o que há de radical na tradição auto-organizada da classe e rejeitar de maneira veemente o que há de mais nefasto na maior parte do sindicalismo brasileiro. A juventude estará atenta às organizações que seguirão nas ruas e lutas. Não hesitará em ocupar, ao lado da geração anterior que continua combativa, seu espaço na organização da classe quando se sentir preparada. Ela já se mostrou disposta a defender a democracia das ruas, enfrentar as estruturas autoritárias do Estado e não pensará duas vezes em atropelar aqueles que reproduzem esta lógica no seio da classe.

*Bernardo Pilotto é técnico-administrativo da UFPR e sociólogo.

**Fábio Nassif é jornalista e militante do PSOL-SP.