Em texto que tem como título “A esquerda e o segundo turno das eleições no Brasil”, Atilio Boron defende que votar no PT nas eleições de 2014 seria o mesmo que apoiar a socialdemocracia contra o fascismo na primeira metade do século XX na Europa. Utilizando exemplos de Trotsky e Gramsci em torno da frente única, seu objetivo é legitimar, pela esquerda, um voto no PT no segundo turno da eleição presidencial brasileira:
“Da mesma forma que a desastrosa política do “socialfascimo”, que pavimentou o caminho de Hitler ao poder, a tese de que Aécio e Dilma “são o mesmo” vai provocar, caso triunfe o primeiro, terríveis consequências para as classes populares do Brasil e de toda a América Latina, para além da obviedade de que Aécio não é Hitler e de que o PSDB não é o Partido Nacional Socialista Alemão.[1]”
Adiante, no texto, o autor afirma que aqueles que defendem que Aécio e Dilma são iguais são míopes políticos, e teriam a mesma postura da terceira internacional stalinista, atualizada para os dias atuais, o que seria um “sectarismo ultra-esquerdista”:
“Dizer que Aécio e Dilma são políticos burgueses é uma caracterização tão grosseira como dizer que o capitalismo brasileiro é o mesmo que existe na Finlândia ou na Noruega – os dois países mais igualitários do planeta e com maiores índices de desenvolvimento humano, segundo diversos informes produzidos pelas Nações Unidas – para, a partir daí, extrair um lúcido “guia para a ação” que oriente a política das forças populares. (…)Mas o sectarismo ultra-esquerdista passou por cima destas supostas ninharias e, com sua miopia política, facilitou a consolidação dos regimes fascistas na Europa.”
Fazendo um breve resgate histórico, temos que ter a clareza do seguinte: quem eram os ultra-esquerdistas que Borón se refere que fortaleceram os regimes fascistas na Europa? Os Stalinistas? Gramsci, mas especialmente Trotsky, defendiam uma política de frente única contra o Fascismo, mas também contra o Stalinismo. Não foram os ultra-esquerdistas (anarquistas? Que grupos seriam estes naquele período histórico?) que fortaleceram a ascensão do Fascismo e Nazismo Europeu, mas especialmente o Stalinismo, através dos seus acordos, controle sobre a classe trabalhadora e intervenções militares (vide a Guerra Civil Espanhola de 1936-1939, especialmente as jornadas de maio de 1937, o Pacto Molotov-Ribbentrop, dentre outros). O Stalinismo tinha, dentre suas diversas características, certa legitimidade histórica de “falar em nome da classe trabalhadora” devido a Revolução Russa de 1917 e da propriedade estatal dos meios de produção, e utilizava essa mesma legitimidade para fortalecer uma burocracia que usurpou o poder operário daquele país, expandindo seu controle por diversos territórios ao redor do mundo. Para manter-se internamente na Rússia, a burocracia stalinista avançou seu controle com o objetivo de impedir qualquer tipo de revolução social, pois essa poderia viabilizar uma revolução política nos estados operários burocratizados. A intervenção militar em prol da “república espanhola”, a qual em defesa da “frente popular” reprimiu duramente o que existia de movimento revolucionário, anarquistas e trotskistas, dentre outros, foi um importante exemplo da luta contrarrevolucionária realizada pela burocracia stalinista.
Borón confunde o papel da frente única na sociedade civil na primeira metade do século XX com o papel dos governos socialdemocratas do pós-segunda guerra, os quais tiveram como base material os “anos dourados do capitalismo”, e, do ponto de vista subjetivo, o medo por parte das classes dominantes do crescimento do movimento socialista (nos termos de Gramsci, uma “revolução passiva”). No Brasil do pós-segunda guerra não foi instaurado nenhum regime socialdemocrata, do tipo keynesiano ou do welfare-state, mas uma ditadura empresarial-militar.
Além disso, se formos realizar um balanço do papel político da socialdemocracia na primeira metade do século XX, não podemos esquecer do papel da socialdemocracia alemã e seu apoio à Primeira Guerra Mundial, e a oposição ferrenha realizada pelo grupo organizado por Rosa Luxemburgo.
Existe uma mudança substancial do papel político da socialdemocracia no século XX, que é o seu avanço, via eleições, no controle do poder executivo. Em texto sobre a socialdemocracia, Ernest Mandel faz uma importante afirmação sobre o tema:
“O gradualismo social-democrata e recusa de lutar pela criação de um Estado operário não implica absolutamente nada que os reformistas não liguem muita importância ao problema do poder. Pelo contrário, eles são obcecados. (…) Como os reformistas rejeitavam a tomada do poder pelo proletariado, eles não tinham praticamente escolha: estavam condenados a administrar o Estado burguês. Neste domínio, a regra do terceiro excluído é universalmente válida. Nenhum Estado, em parte burguês, em parte operário, é concebível. Nunca o houve. Nunca o haverá. A fórmula deve ser interpretada de acordo com a substância e não de uma maneira formal. Um governo de coligação com a burguesia é um governo de colaboração de classe institucionalizada. É um governo que aceita o consenso permanente com o Capital: não tocar nas estruturas essenciais do seu poder. Esta colaboração de classe e este consenso são independentes da presença de ministros burgueses no seio do governo.[2]”
O apoio ao que existia de socialdemocracia no interior da sociedade civil, numa frente única contra o fascismo por fora das estruturas stalinistas, é completamente diferente de apoiar a reeleição de governos socialdemocratas de colaboração de classes. Mas nem isso o Governo Dilma é; ele é, essencialmente, um governo social-liberal.
No segundo turno das eleições atuais tivemos duas candidaturas defensoras da manutenção da ordem capitalista, ou seja, defensoras de uma sociedade na qual o lucro de uma pequena minoria deve prevalecer sobre a vida da ampla maioria. Se a derrota do PSDB nas últimas eleições gerais (2002-2014) são expressão, do ponto de vista difuso da audiência eleitoral, de importante rejeição ao projeto neoliberal, por outro lado, grande parte das forças políticas que por sua história tornaram-se referência como contraponto à tese neoliberal, na prática não tem mais diferenças estratégicas com esta concepção: suas diferenças estão no interior da margem de manobra do “programa estratégico” das classes dominantes, ou seja, representam apenas formas diferentes de viabilizar a hegemonia capitalista.
A rejeição ao projeto neoliberal acabou por não representar um novo projeto, que resgatasse parte dos direitos e do poder político dos dominados. Ao contrário, o social-liberalismo hoje hegemônico, a versão “humana” do neoliberalismo, viabilizou o seu aprofundamento e o maior coesionamento das forças burguesas em torno dos seus projetos estratégicos. As disputas dos dois candidatos foram parte apenas das diversas avaliações decorrentes das frações existentes nas classes dominantes sobre a melhor forma de avançar seu poder (tendo em vista, inclusive, que fração terá mais privilégios na sua relação com a Sociedade Política).
Os Governos Lula da Silva e Dilma Rousseff adotaram uma política macroeconômica explicitamente neoliberal, encaminharam contrarreformas cujo conteúdo neoliberal é indiscutível, como também tomaram enquanto tônica das suas políticas sociais não a ampliação de direitos e sua universalização, mas a atuação “focalizada” típica das políticas compensatórias.
Em relação à política macroeconômica, os Governo Lula da Silva e Dilma Rousseff não moveram um milímetro para alterar a essência do modelo de desenvolvimento – caracterizado, sobretudo, pela dominação da lógica financeira. Os Governos dirigidos pelo PT não apenas mantiveram a política macro-econômica neoliberal, mas aprofundaram-na em grande medida. Num contexto de ajuste fiscal permanente, a política social foi se transformando em sinônimo de política social focalizada, voltada para os mais pobres e miseráveis – com a criação de inúmeros programas de complementação de renda. Implementada ainda de forma tímida pelos governos de FHC, tal política foi ampliada, como nos afirmam Luis Filgueiras e Graça Druck :
“Embora, em si mesmas, essas políticas de combate à pobreza reduzam, momentaneamente, as carências das populações mais miseráveis, as mesmas estão, de fato, inseridas numa lógica mais geral liberal e num programa político conservador e regressivo socialmente, próprios da nova fase por que passa o capitalismo sob hegemonia do capital financeiro”[3].
Ou seja, ao contrário do Governo FHC, no qual existia um grande “consenso” no interior dos movimentos sociais e da intelectualidade crítica de suas medidas conservadoras e neoliberais, os governos do PT abriram um novo momento no qual os agentes sociais que antes se contrapunham as políticas governamentais, agora as apoiam.
Avaliamos que a “globalização da questão social” trouxe uma nova forma de aplicação das medidas conservadoras. Com um novo arcabouço teórico revitalizado pelas ideias “humanistas e de solidariedade”, e pela expansão de seu consenso no interior da sociedade civil pela conversão de agentes sociais antes contestatórios (como a CUT e o PT), a consolidação do social-liberalismo no Brasil restaurou e aprofundou o programa estratégico das classes dominantes no pós-1970, o neoliberalismo. O social-liberalismo é um projeto hegemônico de classe, contraditório e heterogêneo nas suas diversas formulações. Por meio de aparelhos privados de hegemonia, as classes dominantes retomaram a “direção intelectual e moral” do processo de expansão neoliberalismo no Brasil, na medida em que o sistema econômico foi, gradativamente, perdendo credibilidade e legitimidade a partir das lutas contra-hegemônicas e da degradação doas condições de vida da classe trabalhadora. Como nos diz Rodrigo Castelo Branco:
“O social-liberalismo, portanto, deve ser visto, não como uma conscientização humanista e social da burguesia, mas sim como uma ideologia de manutenção da ordem capitalista que embasa uma série de intervenções políticas na “questão social”, como ações do voluntariado, da filantropia empresarial, da responsabilidade social, do terceiro setor e de políticas sociais assistencialistas e fragmentadas, que não questionam as bases da acumulação capitalista, produtora de riqueza no topo e de miséria na base da hierarquia social.[4]”
Do ponto de vista estrutural, o que assegura e explica a linha de continuidade entre o segundo governo de FHC e o governo Lula da Silva e Dilma Rousseff, com a manutenção do mesmo modelo econômico, da mesma política macroeconômica e, não surpreendentemente, da mesma política social, foi a hegemonia do mesmo “núcleo duro” do bloco de poder das classes dominantes (fração do capital financeiro), agora ampliada pela sua fração “de esquerda” social-liberal da qual participa o PT.
Foi o consenso em torno das medidas conservadoras que possibilitou o avanço da direita mais “retrógrada”, claramente coercitiva do ponto de vista da repressão física (não podemos esquecer que existe também a coerção econômica, que se demonstra de diversas maneiras). A relação entre consenso e coerção não é simples. Foi o consenso viabilizado pelo Governo Lula da Silva e Dilma Rousseff em torno do projeto das classes dominantes que viabilizou o avanço da repressão aos movimentos que contestam a ordem vigente, como também de uma direita mais claramente conservadora.
Para superar a atual crise de hegemonia do projeto social-liberal, precisamos fortalecer uma alternativa de oposição de esquerda, sem ilusões diante dos limites institucionais dos governos capitalistas. O Estatismo autoritário vigente, cada vez mais fortalecido pela perda de hegemonia do social-liberalismo, tem como seu complemento, no interior da sociedade civil e na correlação de forças política, o avanço de um liberalismo conservador. Ou seja, se existe, do ponto de vista subjetivo, um responsável pelo crescimento de uma direita autoritária, este seria o próprio PT, que aplicou como seu o projeto das classes dominantes, ampliando de forma ativa o consenso em torno das medidas de ajuste capitalistas e de seu projeto de desenvolvimento, o que abriu espaço para uma oposição ainda mais à direita no interior do espectro político. Como nos lembra Carlos Nelson Coutinho:
“A adoção do governo petista de uma política macroeconômica abertamente neoliberal – e a cooptação para esta política de importantes movimentos sociais ou, pelo menos, a neutralização da maioria deles – desarmou as resistências ao modelo liberal-corporativo e abriu assim caminho para uma maior e mais estável consolidação da hegemonia neoliberal entre nós. (…) Torna-se também evidente na tendência, hoje dominante entre nós, no sentido de reduzir a política a um bipartidarismo de fato, ainda que não formal, centrado na alternância de poder entre um bloco liderado pelo PT e outro pelo PSDB, que continuariam não só aplicando a mesma política econômica e social, mas também praticando métodos de governos semelhantes, que não recuaram de formas mais ou menos graves da corrupção sistêmica. Estaríamos diante do triunfo entre nós da “pequena política” ou seja, de uma agenda que não põe em discussão as questões substantivas da formação econômico-social brasileira. Não é casual o compromisso de ambos esses blocos em “blindar” a economia, ou seja, em reduzir a uma questão técnica e não política a definição daquilo que verdadeiramente interessa ao conjunto da população brasileira. Desse modo, o risco que corremos não é (como muitos afirmam) o da ‘mexicanização’ do nosso sistema político, ou seja, o da criação de um partido governamental único formalmente multipartidário, mas o seu ‘amerincalhamento’, se me permitem o trocadilho, isto é, a criação de alternativas políticas que não põem em discussão as reais estruturas do poder econômico e político que vigoram e vigoraram na sociedade brasileira.[5]”
Uma demonstração ainda mais forte da hegemonia burguesa atual é a confusão feita por diversos setores da esquerda, de que a disputa realizada no segundo turno presidencial foi um conflito entre classes sociais expressadas por partidos e seus programas, e não a escolha, definida pela audiência eleitoral, entre condutores de um mesmo projeto estratégico, com diferenças de retórica e na forma de aplicação de um programa comum (o que acabou por congregar este ou aquele setor organizado, ou fração da classe dominante, nesta ou naquela coligação eleitoral, mais ou menos conservadora no tom de seu discurso). O “amerincalhamento” da política brasileira será reforçado na medida em que avaliarmos os conflitos existentes pela sua aparência, e não por seu conteúdo de classe.
[1]BORON, Atílio. A esquerda e o segundo turno das eleições no Brasil. Tradução de Renato Kilpp e Gabriel Eduardo Vitullo
[2] MANDEL, Ernest. A natureza do reformismo social-democrata. Pág 4
[3] DRUCK, Graça e FILGUEIRAS, Luis. Política social focalizada e ajuste fiscal: as duas faces do governo Lula. Rev. Katál. Florianópolis v. 10 n. 1 p. 24-34 jan./jun. 2007. Pág 29
[4] BRANCO, Rodrigo Castelo. O social liberalismo e a globalização da “questão social” In: IV Conferencia Internacional “La obra de Carlos Marx y los desafíos del siglo XXI” (mimeo)
[5] COUTINHO, Carlos Nelson. O Estado brasileiro: gênese, crise, alternativas. In: LIMA, Júlio César França; NEVES, Lúcia Maria Wanderley (Orgs.). Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2006.