Esse artigo foi originalmente publicado no Vanguarda Política.
A novela é frequente e comum, acontece de norte a sul do Brasil, em âmbito federal, estadual e municipal, mas é pouco conhecida do grande público. Trata-se de um dos mecanismos centrais para o funcionamento do sistema político brasileiro: as emendas individuais no Orçamento.
Funciona assim: o Poder Executivo (presidente, governador ou prefeito) manda sua proposta de orçamento para o Poder Legislativo (Congresso Nacional, Assembleia Legislativa ou Câmara Municipal), onde cada parlamentar (deputado, vereador ou senador) propõe modificações, chamadas de emendas. Desta forma, fica previsto no orçamento do Poder Executivo que haverá “tantos mil reais” para a construção de uma escola, para a aquisição de um tomógrafo para um hospital ou para o asfaltamento de uma região. Após a apresentação de emendas, o orçamento é aprovado e volta para o Poder Executivo que, como o próprio nome diz, vai executar essas ações no ano seguinte.
Só para se ter uma ideia do volume, os deputados estaduais paranaenses apresentaram 1283 emendas a proposta de orçamento para o ano de 2015. As emendas individuais à despesa, cujo limite era de até R$ 1 milhão por deputado, foram 992, num total de R$ 50,2 milhões.
Mas a aprovação de uma emenda não significa que aquela obra vai virar realidade. Por diversos motivos, como o mecanismo de superávit primário, o Poder Executivo retém o dinheiro da obra prevista na emenda. Para a emenda sair do papel, há duas possibilidades: 1) a demanda ser coletiva, de algum segmento social, que vai pressionar o Poder Executivo por ela; 2) o parlamentar negociar esta emenda em troca de algo, normalmente o voto em algum projeto de interesse do Poder Executivo. Não é necessário dizer que a hipótese número 2 é a amplamente majoritária.
É, na prática, um “mensalão legalizado”. Quando são apresentados projetos polêmicos, é comum escutarmos/lermos numa reportagem que o “governo liberou as emendas para garantir os votos da base aliada”.
E é por conta das emendas que quase nenhum parlamentar é oposição ao Poder Executivo. Muitos se elegem por chapas de oposição e passam a votar favoravelmente em todos os projetos do Poder Executivo ou, em casos mais extremos, migram para partidos que vão ser da base de apoio do governo (a criação do PSD é o melhor exemplo disso). No Paraná, por exemplo, as chapas de partidos que fizeram oposição a Beto Richa nas eleições de 2014 elegeram 18 parlamentares; porém, apenas 4 estão se declarando de oposição. Algo semelhante já havia acontecido em Curitiba quando da eleição de Gustavo Fruet.
E porque os parlamentares gostam tanto das emendas? Bom, porque é com essas “obras” que eles se credenciam para pedir votos para sua reeleição, fazendo parecer que eles tiraram do bolso o dinheiro para a construção de uma creche ou de um posto de saúde. O que é direito da população passa a ser “vendido” como uma benesse. Nas eleições de 2014 isso aconteceu aos montes. Muitos panfletos de candidatos a reeleição traziam obras como sendo realizações de “seus mandatos”.
As emendas individuais também paralisam qualquer sentido de planejamento nas obras e ações dos governos. Isso acontece porque as obras não são realizadas mediante um plano diretor, por conta da necessidade da população. Muitas vezes, aquele viaduto, aquele posto de saúde, veio para o município por conta de uma emenda e não porque era uma real necessidade.
Por outro lado, é direito (e dever) dos parlamentares opinar sobre o orçamento enviado pelo Poder Executivo. Para que esse direito possa ser garantido sem gerar o mecanismo clientelista descrito acima, entendo que os parlamentares deveriam propor o aumento de verbas de maneira genérica, deixando a execução a cargo do governo. Por exemplo, é possível emendar o orçamento para que as verbas da educação sejam ampliadas de 7% para 10% das receitas e assim sucessivamente, para outras áreas. Mas, para qual obra vai aquele dinheiro, isso é tarefa a ser definida pelo Poder Executivo, preferencialmente em conjunto com os conselhos de controle social.
O fim do mecanismo das emendas individuais no orçamento poderia ter um reflexo em diversos pontos: maior debate político durante o processo eleitoral (os candidatos apresentariam suas posições sobre os temas e não “suas realizações”), maior fidelidade partidária, menor aparelhamento na composição das secretarias e ministérios, governos deixariam de ser “reféns” do Legislativo.
E, é claro, maior possibilidade de mudanças reais e efetivas na sociedade brasileira.
Saiba mais: Orçamento impositivo e a manutenção das emendas individuais